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Opinião
Terça - 14 de Junho de 2022 às 06:58
Por: Paulo Wagner

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De maneira geral os cachorros fazem parte da história de muitas pessoas e famílias, acho que fazem parte da família, muito embora haja a insistência e o apregoamento de uma superioridade biológica e racional a nos distanciar “evolutivamente” destes seres. Destes bichos especiais que insistem em ser nossos filhos adotivos, que insistem em se aproximar de nós com seu carinho, seu amor, sua fidelidade canina e seu jeito quase humano de ser e sentir.

Um dos cães que passaram por minha infância foi Nero, cachorro que meu pai ganhara de uma família estrangeira, o único sobrevivente de uma ninhada cuja mãe morreu no parto.

Não sei ao certo a raça dele, mas tinha o porte e a aparência de um pointer perdigueiro, todo branco, com patas robustas, mas com orelhas levantadas. Nero escolheu meu pai como dono e se alguém estranho se aproximasse de seu objeto de fidelidade e devoção, ele começava a rosnar e poderia até atacar se não fosse contido. Humanamente, Nero tinha ciúmes de meu pai.

Naquele tempo as ruas dos bairros não tinham tanto asfalto, era comum que tivessem trechos cobertos de areia depois das chuvas. E quando íamos visitar nossa avó, que moravam a umas oito quadras de casa, sem levar Nero como companhia, ele percebia nossa ausência, escapava e vinha numa disparada cega em nossa direção.

Porém, ao perceber que havia passado de nós, estendia suas patas dianteiras sobre a areia, onde deslizava dando aquela freada típica que os cachorros fazem nos filmes de desenho animado. Uma performance cinematográfica engraçada que repetidamente assistíamos ao vivo.

Mas, apesar do amor e cuidado que meu pai dedicava ao seu cão, o bicho um dia comeu um pedaço de charque envenenado que meu pai colocara embaixo da prateleira do mercado que possuía, o pequeno comércio vinha recebendo a visita indesejada dos ratos.

Meu pai estava ausente e quando chegou levou o animal imediatamente ao veterinário, mas infelizmente não houve tempo de fazer a desintoxicação. Nero morreu nos braços de meu pai, que em casa chorou como uma criança, nunca tinha visto meu pai chorar.

Décadas depois minha filha ganhou um filhote de pastor alemão de uma amiga. Chamava-se Sawidi, que na língua do povo Xavante quer dizer “amigo, querido”, denominação que correspondia de maneira acertada ao comportamento e a afeição que tínhamos por aquele cachorro.

Com ele passeávamos pelas trilhas das cachoeiras, próximas de casa. Era só nos ver entrar na água que ele pulava dentro, batendo incondicionalmente suas patas. Uma vez, nestas caminhadas, nos deparamos com um enorme tamanduá bandeira. Foi então que, usando sua memória ancestral de pastor, Sawidi começou andar em círculos a nossa volta e latir para o animal, como se defendesse um grupo de ovelhas de um lobo feroz, um trabalho de guarda e pastoreio que durou até o tamanduá se evadir mato adentro.

Mas, infelizmente, nosso cachorro tinha um costume perigoso, que era demonstrar seu amor devotado por mim, correndo e pulando alegremente em frente de meu carro, quando eu saia de manhã para ir ao trabalho.

Um dia em que estava atrasado e impaciente, vi Sawidi com sua correria alegre e saltitante e seu amoroso e ingênuo olhar a brincar e latir a frente do meu veículo. Buzinei e acelerei diversas vezes achando que ele desistiria de sua demonstração diária de amor, mas ele acabou sendo atingido pelos pneus do veículo. Imediatamente desci e levei-o de volta para casa. Apesar de andar com dificuldades, ele estava vivo e parecia bem. Passado uns três dias, para minha tristeza e de todo a família, Sawidi morreu: o atropelamento havia lesionado gravemente sua coluna.

Até hoje me lembro daquele olhar alegre demonstrando um amor incrível por mim. Nunca me perdoei por este momento de impaciência e crueldade. Se pudesse voltaria para traz o filme do tempo, frearia o veículo e conduziria meu cachorro são e salvo para casa. Aquele olhar amigo continuará vivo para sempre em minha memória.

Paulo Wagner é escritor, jornalista e mestre em Estudos de Linguagem e Literatura.



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