O direito ao aborto Uma coisa é certa: com ou sem lei, os abortos continuarão acontecendo
O mês de junho de 2022 ficará marcado por intensas discussões, lutas e retrocessos sobre um assunto que, ainda hoje, é bastante polêmico no mundo todo: o aborto. A Suprema Corte dos Estados Unidos da América, atualmente composta por uma maioria conservadora e de homens, derrubou, no dia 24 de junho, a decisão histórica proferida no caso Roe vs. Wade, de 1973, que garantia o direito ao aborto em âmbito nacional. Agora, cada Estado poderá definir as regras em seu território, e estima-se que a metade deles decida pela proibição da prática. Essa decisão é considerada um retrocesso de quase 50 anos.
Alguns dias antes, o Brasil enfrentava a sua própria batalha relacionada ao aborto, mas, dessa vez, em situação ainda mais absurda, depois que o Intercept Brasil divulgou um vídeo de uma audiência na qual uma juíza de Santa Catarina tentava convencer uma menina de 11 anos a manter sua gravidez decorrente de estupro. A justificativa? O sofrimento da criança hoje seria a felicidade de um casal amanhã, quando pudesse adotar o bebê. Outro argumento utilizado pela magistrada seria que a menina já estava com mais de 22 semanas de gestação, período limite para realizar o procedimento sem que fosse considerado como homicídio.
Contudo, a magistrada pecou na interpretação do texto legal, possivelmente com o objetivo de fazer com que a criança não tivesse acesso a um direito legalmente previsto. O vídeo é agonizante não apenas por isso, mas especialmente porque uma criança de 11 anos é tratada como se adulta fosse, a partir de questionamentos muito difíceis de responder, como por exemplo: será que o pai (o estuprador) concordaria em entregar o bebê para adoção após o nascimento?
De maneira diferente dos EUA, em que o aborto era permitido de forma livre, no Brasil, existem três hipóteses em que ele é autorizado. Uma delas data de 2012, e se refere aos casos em que o feto possui anencefalia. As outras duas estão previstas no artigo 128 do Código Penal de 1940, que prescreve que o procedimento poderá ser realizado nos casos em que não houver outro meio para salvar a vida da gestante, ou ainda, quando a gravidez resultar de estupro, nos seguintes termos: “se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal”. Note, portanto, que não há nenhuma referência a mais de 22 semanas no Código Penal. Ademais, embora esse prazo conste em uma norma técnica do Ministério da Saúde, serve apenas de recomendação, não tendo o poder de restringir direitos.
De onde vieram tantos argumentos apresentados pela magistrada brasileira para que a menina continuasse com a gravidez? A verdade é que, infelizmente, muitos juristas nascem e vivem a vida inteira dentro de uma torre. As pessoas que passam em concursos com salários altíssimos vêm de realidades em que meninas de 11 anos não engravidam, e, caso engravidem, ninguém jamais ficaria sabendo.
Assim, é muito fácil criar realidades alternativas em que, no aborto, o bebê é tirado do útero e fica chorando até a morte, que o estuprador terá direito de opinar sobre o destino do recém-nascido, bem como, de forma leviana, inventar uma continuação para a redação do inciso II do artigo 128 do Código Penal: “só até a 22a semana”.
Até que muitos juristas e políticos decidam descer de suas torres e olhar a realidade da grande maioria da população com empatia, continuaremos nos deparando com decisões absurdas que só serão modificadas após intensa pressão social.
Uma coisa é certa: com ou sem lei, os abortos continuarão acontecendo, mesmo que de forma clandestina, o que coloca em risco a saúde e a vida das mulheres. Aplicar a lei aos casos por ela hoje previstos é uma questão de justiça e humanidade, e discutir a ampliação para outros casos é questão social e de saúde pública.
Jennifer Manfrin é advogada, especialista em Direito Aplicado, professora e tutora nos cursos de Pós-graduação em Direito do Centro Universitário Internacional Uninter.
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