Carta aos humanos A cada ano, minha sede só aumenta e, mais que isso, me atormenta
É desta planície, antes inundável, desta planura ressequida e consumida pela areia que me sufoca, que me manifesto em um protesto contra a destruição de meu futuro, contra o duro golpe que recebo em meu cotidiano. A cada ano, minha sede só aumenta e, mais que isso, me atormenta a alta probabilidade de me tornar uma impossibilidade de garantir a vida de milhões de seres que abrigo, além de oferecer comida e proteção contra o perigo.
Quero gritar, conclamar e até mesmo desafiar o tal do ser humano a rever, refletir e repensar todo seu plano de transformar em um lugar inóspito, estéril e sem nenhuma vida, o que sou e represento, como Pantanal, um lugar cuja paisagem é consumida pelo fogo, pela seca e pela irresponsabilidade desmedida.
Cada ação que sofro todo dia, é um dia a menos em minha vida e, além de mim, cada vida que abrigo e alimento, também é vulnerada em sua integridade depois de cada ação. Depois de cada um desses revezes, acelera ainda mais a minha vulnerabilidade, porque, é bem verdade, o equilíbrio necessário é destruído e cada ser que aqui vive é ferido.
Além de tudo, o nosso ar vem sendo poluído por venenos espalhados no céu, na terra por todos os lados sob a trágica desculpa de progresso, uma falácia produzida por um réu confesso, o ser humano desumanizado.
Antes, eram as enchentes que matavam o gado e para evitar que perecessem, e milhares pereceram, eram conduzidos para as pastagens elevadas.
Agora são queimados vivos, incinerados, consumidos pelo fogo que se tornou endêmico por causa das secas resultantes do desmatamento.
Havia água, que é meu sangue, a me embeber de nutrientes que enriqueciam cada palmo de meu solo e isso era maior durante enchentes que ocorriam todo ano tão regularmente que era possível antever a fartura de alimentos aos viventes pantaneiros. Entretanto, a cada tempo de chover, só há sol ao meu redor e muitos rios caudalosos, se tornaram caminhos arenosos, agora uma estrada, por onde nadavam peixes, hoje passam as boiadas.
As aves que povoam o meu céu, agora voam de déu-em-déu em busca de um lugar seguro para construir seus ninhos e para procriar, provavelmente, agora, estarão a caminho da extinção. Enquanto isso, sem compromisso com a vida pantaneira, o humano expande a fronteira da soja, do sujo e do sujeito irresponsável, que acredita que todo solo é arável para sua produção. E, assim, nessa toada criminosa, vai destruindo a natureza majestosa em toda e qualquer direção, sem que alguém, algum humano responsável, levante a voz potente e enfrente com vigor a minha destruição.
Senhores do Poder, tão poderosos, que perderam a noção deste Planeta e se acham muito acima da ciência, todos eles assoberbados, desconhecem, ou fingem desconhecer, a complexidade da vida sobre a Terra. Acordem, por favor, da letargia em que se encontram pela força da soberba e na ganância, abram seus olhos e olhem à distância para perceber o que fazem e estão fazendo.
Na ânsia da riqueza que pretendem, estão destruindo a natureza de modo acelerado, sem ter remorso ou pudor no desvario, vão destruindo matas e entupindo rios com o solo carreado em enxurradas ao final de um plantio e seu leito assoreado.
As minhas águas cristalinas, transparentes, mostravam peixes, tantas espécies tão especiais, que agora minguam no silêncio do rebojo quase inexistente; nas aguadas e lagoas emagrecidas, a água quente não permite tanta vida, já que o sol incandescente não encontra mais a mata ciliar que dá guarida à fauna, desde então desprotegida.
Há um prenúncio de desgraça em meu lugar, onde a vida ainda germina sem limites, mas o futuro que me aguarda é tenebroso, pois sem limites os humanos poderosos me apunhalam em ataques perigosos.
São tratores em manadas, colhedeiras desfilando alinhadas, aviões despejando inseticidas, herbicidas e outros venenos, que matam tudo, sem deixar alguma ave, pelo menos. A mortandade continua com os adubos despejados, sem respeitar o volume desejado, numa avalanche de imenso desperdício, imaginando o que ganhará com isso, mas se esquecem ou tentam esquecer por desrespeito, que a natureza, por seu próprio direito, haverá de restaurar, um dia.
Sou o espaço do sagrado, e ser sagrado não é permitido, ser tocado, sujo ou agredido, pois isso é profanação, os que me tocam, me agridem, sujam, serão sujados e também feridos e bem cobrados pela agressão.
Sou Pantanal, esse lugar de vidas, não ter feridas é minha obrigação, mas os humanos, nesses seus enganos, pensam que vida também tem seu preço, vendem a alma em busca de dinheiro, sem saber que o verdadeiro ato de viver a vida é a ter sempre compartida com outras muitas vidas deste espaço inteiro.
Socorro! Já implorei por muitas vezes, mas, em vez de apoio, de ajuda ou de respeito, só ouço o último aboio do vaqueiro conduzindo a comitiva sobre o leito já sem água desse rio só de areia. Socorro, minha gente que ainda é gente! Assim, somente com ajuda deste humano resistente poderemos reverter esta corrente de amargura e destruição. Desse jeito restará somente história, já gravada na memória das pessoas de idade, por isso, deste mundo natural, que tem nome e sobrenome, o Planeta Pantanal, só será curiosidade a ser buscada na internet ou em parque artificial.
Cansado, arquejando, genuflexo por fraqueza do abandono, sou o Pantanal que já foi dono de miríades de vida, fauna e flora colorida, sinfonias matinais, ouço, agora em agonia, o findar dessa alegria, dessa cantata na harmonia de seus acordes finais.
Que os humanos compadeçam, antes que os ouvidos esqueçam do gargalhar da seriema, do suspirar da ema, do gemido do mutum, do gazear da garça e só, então, se arrependerá da desgraça que causou por ação ou omissão. Restará somente o buscar na internet o cantar que se repete todo dia sempre igual, sem jamais ter conhecido, ouvindo no próprio ouvido a sinfonia matinal, das aves em revoada, pairando sobre a aguada em busca de alimento.
A falsa ideia da vida que está sendo consumida pela ganância do humano, cativo de seu engano, seguindo um plano imoral, será apenas lembrança, se a nossa grande esperança não virar realidade, por isso, a bem da verdade, escrevo esta Carta para toda a humanidade, implorando com firmeza, salve a Nossa Natureza. Por isso, em minha certeza, eu a assino…
Pantanal
José Pedro Rodrigues Gonçalves é doutor em Ciências Humanas.
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