Aprisionados pelos mitos Nós, brasileiros, somos herdeiros de mitos absorvidos dos povos originários
Aproveitando este momento pré-eleitoral, falarei de mitos, mas no sentido já atualizado e ampliado do termo.
Começo lembrando que, nós, brasileiros, somos culturalmente herdeiros de mitos absorvidos dos povos originários, dos africanos e dos portugueses, que já haviam incorporado muito da mitologia greco-romana, bem como de outros povos que já haviam se fixado na Península Ibérica, onde se encontra Portugal.
Logo, fugir da força dos mitos é tarefa complexa; e do conjunto de mitos, destaco a herança do sebastianismo e do cristianismo. Mais do que outros, ambos parecem nos influenciar muito fortemente.
Do primeiro, a influência pode estar aconchegada em algum lugar do nosso inconsciente coletivo, que, resumidamente, pode ser compreendido como um tipo de herança subjetiva herdada dos nossos ancestrais.
Disso, advém a possibilidade de nossa tendência comportamental de acreditarmos piamente em salvadores da Pátria, à lá o velho Sassá Mutema.
Em poucas palavras, o “sebastianismo” foi uma crença – próxima da profecia – surgida em Portugal, no final do séc. 16, por conta do desaparecimento do rei Dom Sebastião, durante a batalha de Alcácer-Quibir, na Mama África. Acreditava-se – aliás, como hoje se acredita em algo semelhante – que aquele rei voltaria para salvar Portugal das mazelas políticas, econômicas e sociais, desencadeadas (ou apenas escancaradas) pelo seu desaparecimento.
Acerca da influência cristã, parece-me que a deplorável “fotografia” hodierna da vida brasileira dispensa comentários extensos; assim, sintetizo dizendo que vejo meu país cada vez mais atolado nos meandros das concepções mais retrógradas do medievo propriamente dito.
Ao utilizar uma flexão do verbo “atolar”, o faço exatamente por observar, não sem constrangimentos, a adesão de tanta gente à propaganda dos dois mitos políticos brasileiros que capitaneiam as pesquisas para as eleições presidenciais de 02 de outubro.
Cada vez que recebo alguma mensagem, geralmente pelas redes sociais, dessa disputa política do mais baixo nível que poderíamos ter atingido, fico pensando na força que os mitos exercem sobre tantos seres do tipo inocentes úteis. Já sobre os que optam por assim se fazer passar, vale lembrar que a performance da fingida inocência também gera utilidade a quem dela se serve.
Seja como for, como, pelo menos num primeiro momento dessa campanha eleitoral, não consegui ser seduzido para entrar em nenhum dos lados dessa miserável disputa, pois enxergo que há saídas que poderiam superar a polarização que experimentamos, confesso que sinto uma certa vergonha alheia pelos apaixonados de um e de outro grupo.
Às vezes, além da vergonha alheia, também surge uma pontinha de decepção com criaturas próximas da minha existência. Mas vida que segue.
Com essas considerações, não quero dizer que ambos os mitos sejam completamente iguais em tudo, embora em muito se igualem.
Entre o “Inominável” e o “Inacreditável”, aquele, autoritário de berço, sequer consegue respeitar nossa Constituição; e isso não é pouca coisa, reconheço; e, apenas por isso, portanto sem nenhuma ilusão depositada no velho e enrouquecido blá-blá-blá de décadas, em eventual segundo turno, não me restará outra alternativa. Tenho memória. Por não desconsiderar a história recente de nosso país é que não cederei aos apelos do voto útil antecipado.
Mas, afinal, em que se igualam os mitos que movem tanta e pueril paixão?
Os “sebastiões” de nossa política atual se igualam, mais do que em outros itens, exatamente naquilo que cada um tem buscado apontar como absurdo e inaceitável no comportamento político do outro, que é a corrupção. Nesse oco tiroteio verbal, há quem dê crédito a um e a outro!
Esse crédito, sem lastro algum, seja a um ou a outro mito, tem tirado muitas pessoas do chão da razão, elevando-as aos eflúvios celestiais. Eis, pois, a força dos mitos agindo e aprisionando as pessoas, ou em uma bandeira nacional, ou em uma toalha ligeiramente avermelhada com a estampa de alguém; e tudo isso independentemente do grau de instrução e posição social de cada ser que compõe as duas legiões de fanáticos. Impressionante!
De antemão, os mitos nos venceram. Logo, à lá o velho Machado, o de Assis, a ambos, as batatas!
Roberto Boaventura da Silva Sá é Dr. em Ciências da Comunicação/USP.
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