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Opinião
Sábado - 24 de Dezembro de 2022 às 05:36
Por: Juacy da Silva

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Ao longo de cada ano, repetendindo-se por decadas ou até mesmo por séculos, na quase totalidade dos países mundo afora, as pessoas são chamadas, convocadas, motivadas a celebrar diversas datas “comemorativas”, quando, deveriam parar um pouco e refletir, mais profundamente, qual o real significado de tais comemorações.

Podemos mencionar, apenas a título de exemplo, algumas dessas datas ou dias que nos remetem a alguns aspectos concretos de nossa realidade: Dia da Terra (será que estarmos tendo o devido cuidado com o nosso planeta, com a mãe natureza que está sendo degradada aceleradamente?);

Dia da Mulher (que tanta violência, exclusão e discriminação tem sofrido em todos os países);

Dia das crianças (será que realmente nos preocupamos com a sorte e o futuro das crianças que perambulam, são violentadas, passam fome em meio aos conflitos, sejam familiares ou guerras?;


Dia das mães e dos Pais (será que de fato valorizamos, como merecem as nossas mães e nosos país ou os abandonamos, principalmente ao final de suas existências?);

Dia da Pessoa com Deficiência (será que realizamos ações para que essas pessoas possam viver em uma sociedade inclusiva e com dignidade?);

Dia do Migrante (será que temos consciência do drama em que vivem milhões de pessoas, principalmente crianças e idosos que fogem da miséria, da fome, da violência, dos conflitos e das guerras, em busca de novas oportunidades de vida?);

Dia do Pobre (será que percebemos que na verdade bilhões de pessoas vivem na pobreza e na extrema pobreza, sem a mínima dignidade que o ser humano deve ter?)?

Dia do Idoso/Idosa (será que temos consciencia de que em todos os países, inclusive no Brasil o número de pessoas idosas esta aumentando rapidamente e que, a grande maioria dessas pessoas sofrem discriminação, preconceitos, abandono, maus tratos e experimentam fome, miséria e pobreza?),

Dia dos Indígenas (como nosso país e outros ao redor do mundo trata suas populaçõs originárias, com respeito e dignidade ou destruindo suas culturas e dizimando-as com violência?),

Dia dos Trabalhadores (será que sabemos que ainda existe trabalho escravo, semi-escravo ou que os salários que a grande maioria dos trabalhadores recebe não são suficientes para terem uma vida dígna?

Dia da paz mundial (será que percebemos que os conflitos armados e as guerras (verdadeira estupidez humana) tem ceifado a vida e imposto sofrimento a dezenas de milhões de pessoas e ainda hoje está presente em diversos países?)

Essas são apenas algumas datas que deveriam nos induzir a uma reflexão sobre a realidade que nos cerca, seja como anda a nossa família, a nossa comunidade, inclusive nossa comunidade de fé (nossa Igreja ou religião), nossa cidade, nosso Estado, nosso país, enfim, o mundo inteiro?

Lamentavelmente, a totalidade dessas datas foram, inclusive o Natal, aos poucos e cada vez mais continuam sendo apropriadas pelo espirito capitalista, como sendo datas especiais para “alavancar” as vendas, os lucros, a acumulação de renda, riqueza em poucas mãos e, massificando, alienando as pessoas quanto `a concretude da realidade do dia-a-dia, agindo como verdadeiro anestésico na consciencia individual e coletiva.

No imaginário coletivo, por ocasião dessas datas, parece que tudo é festa, que o mundo, todas as pessoas estivessem vivendo em um grande parque de diversão, com seus carrosséis, suas rodas gigantes, suas luzes, muita música, comida farta e alegria e todas as pessoas sempre felizes.

Assim também acontece com o Natal, que nos remete ao Deus encarnado, ao “Menino” Jesus, ao Messias tanto esperado pelos profetas do Velho Testamento, ao Cristo Libertador da humanidade de seus pecados, ao Cristo que pregou o amor e jamais o ódio e a violência; ao Cristo que ao nascer não teve por berço uma luxuosa mansão, uma maternidade luxuosa ou um hotel cinco estrelas, um “resort” onde apenas os milionários ou bilionários podem frequentar e darem-se ao luxo de saciarem seus prazeres momentâneos; mas sim, Ele veio ao mundo na figura de uma familia de migrantes pobres, sem as mínimas condições econômicas e financeiras para ficarem hospedados dignamente, sem qualquer assistência maternal para que Nossa Senhora pudesse dar `a luz a esta criança, esse menino que , ao longo de sua vida adulta, mesmo pregando apenas o amor acabou sendo condenado, preso injustamente, torturado e crucificado, mas que mudaria o curso da história e da humanidade; nasceu em uma estrebaria, ou seja, no cantinho de um curral, em meio aos animais, com certeza um lugar nada acolhedor, mas que ainda hoje está no centro da história humana.

Todavia, a figura deste Cristo humilde e libertador, que viveu e conviveu com os pobres, os excluidos, as prostitutas, os doentes, os violentados e oprimidos, cedeu lugar ao Papai Noel, um velhinho simpático que muito habilmente se transformou na figura central de grande marqueteiro natalino, utilizado da ‘melhor maneira possível” e com todas as técnicas de propaganda e convencimento alavancando o mercantilismo, o consumismo, o materialismo, o desperdício (principalmente de alimentos) e a alienação por parte das pessoas que quando muito pensam que do “lado de fora” de nossa casas, de nossos condomínimos fechados, de alto padrão, de luxuosos aptos, que não apenas momentaneamente, mas ao longo do ano e dos anos, simplesmente ignoram que no mundo existem mais de 2,3 bilhões de pessoas vivendo na pobreza, entrre as quais quase um bilhão estão em condições de pobreza extrema e, literalmente, passando fome, não apenas na véspera ou no dia de Natal, mas ao longo dos 365 dias de cada ano, ao longo de decadas, séculos.

A Igreja Católica através da CARITAS INTERNACIONAL e no Brasil, a CNBB pelas mãos da Caritas Nacional e suas representações nas Arquidioceses, Dioceses e Paróquias, da mesma forma que praticamente todas as demais Igrejas, Religiões, seitas ou filosofias e organizacoes não goverrnamentais, filantrópicas tem chamado a atenção de que milhões de pessoas no Brasil neste ano de 2022, não terão nada para comer, não irão comemorar o Natal, são mais de 33 milhões que estão sofrendo diariamente a dor da fome; mais de 120 milhões de pessoas que vivem na pobreza, milhões de desempregados, milhões de subempregados, milhões de crianças famintas, centenas de milhares de pessoas que não tem um teto para morar com dignidade e fazem das ruas, dos viadutos e das praças, das marquises seus “lares”, vivendo em completo abandono e na mais abjeta condição, longe do que exige a dignidade humana.

Geralmente nesta época do Natal, somos despertados para oferecermos alguma colaboração visando tornar a vida dessas pessoas, mesmo que seja por apenas um dia ou uma noite, para apenas uma pequena parcela desta grande massa de pobres, famintos e miseráveis que vivem quase que ocultamente em nosso país ou que como “bons cristãos”, fingimos que não vemos e continuamos a ignorar as suas existências ao longo do ano, as vezes bem proximos de nós, como a figura de Lázaro na porta do rico.

Na verdade é como o que o próprio Cristo se refere quando fala nas “migalhas” que caem da mesa dos poderosos, para alimentar os animais, nós também somos motivados a essas ações meramente assistencialistas, nem que for por um dia, imaginando que assim, estaremos colaborando para acabar com a fome no mundo , em nosso país ou as vezes nas proximidades de nossas residências. Ledo engano.

A Caritas Brasileira/Nacional há anos vem colocando a questão da caridade como uma força transformadora de nossas relações em sociedade e, historicamente, a Igreja Católica, da mesma forma que praticamente todas as demais Igrejas e Religiões costumam realizar um grande trabalho assistencial, as vezes até tentando substituir as funções das Instituições públicas, dos diversas níveis de governo ou do Estado (sentido amplo do termos e não de unidades geográficas).

Prova disso é a realização da Campanha da Fraternidade que é realizada todos os anos e, periodicamente, o faz no âmbito ecumênico, tendo como temas diversos aspectos da realidade socioambiental do Brasil, inclusive a FOME, como aconteceu em 1985 e, novamente, neste novo ano de 2023, que se aproxima, quando o tema será FRATERNIDADE E FOME.

Pois bem, a CARITAS após anos de análise da realidade nacional tem procurado identificar as causas da pobreza, da fome e da miséria e, assim, não apenas promover ações assistenciais ou assistencialistas mas ir mais a fundo nessas questões.

Assim fazendo desenvolveu a uma metodologia que estabelece tres níveis: a CARIDADE ASSISTENCIAL, que visa “dar o peixe”, ou seja, atender imediatamente quem tem fome, sede ou está na extrema penúria. Nesta categoria inserem-se todas as ações como com diferentes nomenclaturas, como por exemplo, o “natal sem fome’, a mera distribuição de uma pequena “ceia de natal’, alguns sacolões ou marmitext, mas que acabam logo a seguir e as pessoas voltam a ter fome de novo.

O segundo nível é a CARIDADE PROMOCIONAL, que procura “ensinar a pescar”, ou seja, ao invés do mero assistencialismo, busca oferecer condições para que os pobres, os miseráveis, os famintos possam se qualificar para “competirem” no mercado de trabalho, (os programas de emprego e renda), mesmo sabendo que o desemprego e o subemprego são mecanismos utilizados pelo sistema capitalista para ter o chamado “exército de reserve de mão de obra”, que ajuda a manter os salários sempre aviltados, empurrando a massa de trabalhadores para a penúria em que vive.

Finalmente, o terceiro nível é a CARIDADE LIBERTADORA, que significa “pescar juntos”, ou seja, lutar e caminhar, como Jesus fez, ao lado dos pobres, excluídos, famintos, miseráveis, injustiçados para ajudar a despertar-lhes a consciência e perceberem que algo de errado existe nas sociedades em que vivem ou meramente sobrevivem, entenderem as verdadeiras causas da pobreza, da miséria, da fome, da violência, do preconceito, da discriminação racial, da exclusão social, política, econômica e cultural e perceberem que tais mazelas só poderão ser realmente equacionadas através de politicas públicas, participativas, transparentes e democrátiamente estabelecidas, que promovam inclusão, dignidade, justiça social, justiça Ambiental, justiça racial e de genero e uma sociedade com equidade e amor.

O Papa Francisco tem insistido em vários de seus pronunciamentos e textos (Encíclicas) quanto `a natureza do assistencialismo enfatizando sempre que esta forma de agir serve muito mais para aliviar nossas consciências em relação a todos os problemas mencionados nesta reflexão e não promovem as mudanças estruturais que realmente transformam esta realidade.

Para o Sumo Pontífice, a única forma de acabar, de vez com essas mazelas, é através do trabalho digno, com salário justo, condicções dígnas e garantias de progresso e bem estar para todos. Isto pode ser observado, por exemplo, quando enfatiza seus tres “Ts”: terra, teto e trabalho.

Entre suas propostas estão a de “realmar” os modelos econômicos, daí sua proposta de novos paradígmos contidos na Economia de Francisco e Clara; no Pacto Global pela Educação, na Laudato Si em relação a um melhor cuidado com a Casa Comum (o planeta terra) e a Ecologia Integral; na Exortação Apostólica “Querida Amazônia”, na Encíclica Fratelli Tutti, , onde, inclusive, questiona a concentração de renda, bens e riqueza, tudo isso, no contexto da Doutrina Social da Igreja.

Só assim, poderemos, um dia, quem sabe, termos, de fato não apenas UM NATAL SEM FOME, mas um mundo sem pobreza, sem fome e sem miséria ao longo do ano todo e de todos os anos!

Mas isto só virá quando, de fato, formos capazes de unir nossa fé com nossas ações sócio-transformadoras, no contexto de novos paradigmas, inclusive participando e praticando a verdadeira CARIDADE LIBERTADORA e não apenas a caridade assistencialista e manipuladora, que apenas reforça o chamado “status quo” e não transforma as estruturas que geram todas essas mazelas sociais, econômicas e políticas.

Creio que esta deveria ser uma forma de refletirmos de forma mais profunda e criticamente sobre a verdadeira natureza e significado do NATAL, como disse Jesus pouco antes de seu calvário, “O meu mandamento é este: amai-vos uns aos outros, como eu vos amei” e “Isto vos mando/ordeno, que vos ameis uns aos outros”. Evangelho de São João, 15:12 e 17.

Juacy da Silva é professor titular, aposentado da Universidade Federal de Mato Grosso.



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