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Opinião
Sexta - 30 de Dezembro de 2022 às 08:40
Por: ROBERTO BOAVENTURA SÁ

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Uma vez que não consegui ser inédito no título deste artigo, pois o resgato de um outdoor, salvo engano de 2017, farei, ao menos, considerações a respeito de sua construção linguística, vinculada ao nosso cotidiano político, vivido durante o governo de Jair Bolsonaro, que, ao que tudo indica, tornará sem sentido aquelas frases de efeito, pronunciadas em 31 de outubro pp.: “Só Deus me tira da cadeira presidencial. E me tira, obviamente, tirando a minha vida”.

Frases de efeito – ou de defeito – à parte, o fato é que, a primeira vez que li o enunciado “É bom já ir se acostumando”, me lembro de tê-lo considerado inteligente, pois a junção do advérbio de tempo “já” com o verbo “ir”, um irregular da terceira conjugação, no infinitivo, resultava em uma cacofonia – geralmente inserida em trocadilhos, também conhecidos como calembur – que deixava sobressair, no centro daquela elaboração, o nome do atual presidente da República (já ir), à época, apenas um candidato vindo do mais baixo clero do Congresso Nacional.

Dali para diante, o então e mero candidato, sempre identificado com pautas ultraconservadoras da extrema direita, conseguiu catalisar toda repulsa que o anti-lulopetismo oferecia por conta de suas corrupções no passado.

Portanto, antes que suas próprias qualidades, foram os defeitos (e pecados quase mortais) do oponente a sua verdadeira alavanca para subir a rampa do Planalto em janeiro de 2019, agora, já com os tapetes vermelhos estendidos para ver Lula subi-lo pela terceira vez. Quem diria!?!

A despeito de eu ter achado inteligente o enunciado de que estou tratando, o fato é que, em 2017, não levei fé naquilo, mesmo considerando-o um bom marketing político. Alheio a minha velha falta de fé, o fato é que Bolsonaro ganhou as eleições por conta de erro de cálculo e sede pelo poder do mesmo lulo-petismo, que não soube abrir mão daquela disputa para qualquer um que fosse identificado como uma terceira opção; aqui, vale lembrar que as eleições foram realizadas (e não contestadas à época) por meio das exemplares urnas eletrônicas, as mesmas que não reelegeram o atual presidente.

Mas assim que Bolsonaro tomou posse, o lado sombrio da cacofonia presente no enunciado estava por ser comprovado e vivenciado no dia-a-dia durante os quatro anos de seu (des)governo. A cada momento, o tom ameaçador, que passaria a servir como sustentação para o autoritarismo que corria em suas veias, evidenciava-se. Claro que uma pitada de vingança antecedia à própria construção linguística do enunciado.

Paradoxalmente, em nome de “Deus acima de tudo e de todos”, da família e da pátria, a sede de vingança, junto com o autoritarismo, fez explodir – em quase metade de nossa população – o sentimento do ódio, que passou a nos dividir de forma “como nunca antes vista na história deste país”.

Em todos os espaços (família, escola, trabalho, laser etc), fomos e estamos divididos. Divisão que não se materializa, como muitos podem pensar, por conta dos nossos meros e singelos “pontos de vista” (ou das liberdades de expressão), como, p. ex., os tipos que são inteligentemente elencados na composição “Ponto de Vista”, de Eduardo Griger e João Cavalcanti.

Infelizmente, nossa divisão vai muito além disso, pois ela está para a nossa forma de concebermos a vida em sociedade: democrática ou antidemocraticamente. Em palavras diretas, aos seres antidemocráticos, o ódio do jeito bolsonarista de-ser-e-estar no mundo serviu como luva para um liberou geral a muitos dos nossos semelhantes, infelizmente, nem tão semelhantes como pensávamos.

Portanto, no atual contexto, a concepção de vida daquilo que identificamos como sendo “bolsonarista” extrapola o voto dado a Bolsonaro em si. Essa concepção tem como base comum a todos que a comungam o ódio ao que não lhe é de espelho, como diz Caetano em “Sampa”.

Desse sentimento, irrefutavelmente menor, outros foram sendo manifestados sem qualquer pudor; pior: sem racionalidades para contê-los. Dentre todos, destaco a defesa do golpe militar; logo, da ditadura e, obviamente, da censura, que têm como consequência a eliminação do adversário, sempre visto como inimigo, seja de que forma for: às vezes, mais assépticas e outras, nem tanto assim. Nesse sentido, “O Bêbado e a equilibrista”, de Aldir Blanc e João Bosco, dão conta de nos dar uma mostra dos tempos sombrios do golpe de 64, que deixavam todos sonhando “...com a volta do irmão do Henfil/ Com tanta gente que partiu/ Num rabo de foguete...”

Mas a abrangência do ódio disseminado por Bolsonaro tomou conta de, ou apenas deu vazão, gente que mal compreende o ABC de nossa política, até porque a maioria preferiu fartar-se de fake a correr atrás dos fatos.

Exemplifico isso com apenas um episódio que, estarrecido, presenciei: uma tia, declaradamente cristã, dessas que esfolam o joelho rezando todos os dias, durante um almoço de domingo, lamentou que a deputada Zambelli não tivesse atirado, para matar, naquele petista que ela acuou em um bar da cidade de São Paulo. Quando tentei ponderar sobre o absurdo que estava sendo dito, a tia espumou um ódio ainda mais intenso e gosmento. Impressionante.

Pois bem. Agora que o tempo passou e, como diria Drummond, no poema “E agora José?” (In: A Rosa do Povo; 1945), que “...A festa acabou,/ a luz apagou,/ o povo sumiu,/ a noite esfriou...”, pelo menos para o sombrio jeito de pensar bolsonarista de tanta gente, aliás, muitos queridos nossos, como aquela tia, precisamos voltar a tocar em frente a vida, pois, como canta Almir Sater, “...É preciso amor pra poder pulsar/ É preciso paz pra poder sorrir/ É preciso a chuva para florir...”

Para encerrar este artigo, volto a Drummond, mas no brevíssimo poema “Cota Zero”, inserido no livro Alguma poesia (1930), que basicamente se resume a um único verso em que consta uma antológica dúvida existencial: “Stop. A vida parou ou foi o automóvel?”

Ao que tudo indica, a despeito de nossos pontos de vista ou de nossas concepções de vida, ouso responder que foi o automóvel que parou, e não a vida. Mesmo com muitas adversidades, à lá Epicuro, ela segue seu fluxo. Todavia, o automóvel não pode ficar parado ad aeternum.

Se parou por algum defeito mecânico momentâneo, ele precisa ser consertado para continuar tendo alguma importância. Mais: doravante, ele precisa ser conduzido de forma absolutamente íntegra e responsável, pois, a qualquer erro de condução, o sinal aberto para o retorno de novas experiências progressistas poderá se fechar outra vez. E se isso ocorrer, os estragos sociais poderão ser insuportavelmente dolorosos, pelo menos por muitas e muitas décadas, e para muitas e muitas gerações.

Saudações a todos e total sucesso aos novos condutores deste grande automóvel chamado Brasil.

Vida longa – e mais racional e amorosa – a todos nós, brasileiros e brasileiras, deste país que precisa voltar, como é dito em “Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso, a abrir “...a cortina do passado”, a tirar “a mãe preta do cerrado” e a botar “o rei congo no congado”, bem como, a ver cantar “de novo o trovador/ A merencória luz da lua


Toda a canção do seu amor”.

Assim seja!



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