Lições de uma madrugada em Guarulhos Uma madrugada que ainda não terminou e sobre a qual muito ainda há por revelar
Os voos provenientes da Arábia Saudita costumam chegar no final da madrugada no Aeroporto Internacional de Guarulhos. É uma hora sonolenta em que o aeroporto está semideserto, com quase nenhum movimento e a maioria das lojas, quiosques e lanchonetes está de portas cerradas.
O turno da manhã ainda não começou e os poucos funcionários que fizeram o plantão da noite já estão fatigados e se preparando para encerrar o expediente sem maiores incidentes. Um cenário propício para que certos malfeitos passem despercebidos.Mas não naquela noite.
Um episódio rocambolesco estava para acontecer. Como num filme de intriga internacional mesclado com chanchada e com personagens que se imaginavam elegantes e astutos como James Bond mas se assemelhavam e se comportavam como os saudosos Trapalhões.
Parafraseando a bela canção interpretada por Jair Rodrigues e Beth Carvalho: “Longa madrugada foi aquela ...”. Uma madrugada que ainda não terminou e sobre a qual muito ainda há por revelar.
Alguns fatos já são públicos e constam dos procedimentos policiais e judiciais em curso. Há fortes indícios de violação do Código de Conduta da Alta Administração Federal, das normas da Comissão de Ética Pública, de prática de improbidade e até dos delitos de descaminho e peculato.
Nunca na história brasileira se tinha visto a comitiva de um ministro de Estado adotar as técnicas de muambeiros que camuflam I-phones em rolos de papel higiênico na travessia da Ponte da Amizade na fronteira paraguaia. Só que dessa vez eram diamantes no valor de R$ 16 milhões.
Porém o propósito deste artigo não é destacar os maus exemplos e sim as lições de bom comportamento técnico e profissional em defesa do interesse público.
Refiro-me, primeiramente, aos servidores concursados da Receita Federal que estavam em serviço naquela madrugada em Guarulhos. Fizeram a coisa certa. Apreenderam os bens de alto valor que não foram declarados na sua chegada ao país. É o que se exige de todo cidadão brasileiro. A lei é para todos, inclusive para os poderosos.
Fizeram a coisa certa também os demais servidores concursados da Receita que resistiram às múltiplas pressões e tentativas de “carteiradas” para liberar as joias milionárias, o que somente poderia ser feito com o recolhimento dos tributos devidos e a apresentação de documentos certificando a origem lícita dos diamantes.
Não adiantaram os e-mails do superior hierárquico, Chefe da Receita, os telefonemas do ministério e do Palácio do Planalto e até a visita de um militar em missão especial num voo exclusivo da Força Aérea Brasileira.
Não é difícil prever que o desfecho teria sido muito diferente e contrário ao interesse público se, em vez de servidores concursados, com independência política, qualificação técnica e, principalmente, estabilidade constitucionalmente garantida, aquelas funções estivessem sendo exercidas por ocupantes de cargos em comissão ou funções de confiança, demissíveis a qualquer momento, conforme os humores da autoridade reinante.
Episódios como esse comprovam a importância de que carreiras de estado tenham os seus integrantes selecionados de forma imparcial, mediante concurso público, e sejam amparados pela estabilidade. A estabilidade, mais que um garantia do servidor, é uma proteção para a sociedade.
A bem dizer, muitas outras funções estatais, como na área do controle da gestão, deveriam ser reservadas a quem tem formação técnica especializada e elevado grau de independência política.
Todavia, em vez de avançar, nosso país está ameaçado de grave retrocesso. A Câmara dos Deputados aprovou o projeto de lei 2.896/2022, que altera o Estatuto das Estatais (lei 13.303/2016) retirando regras que blindavam tais empresas contra a indicação de dirigentes e conselheiros de administração por conveniências político-partidárias.
Se o Brasil deseja que as suas estatais tenham bom desempenho nas diversas áreas de atuação, necessita, a exemplo de outros países, do setor privado e do terceiro setor, adotar sólidos princípios de governança corporativa, inclusive com a presença expressiva de conselheiros independentes e tecnicamente preparados.
Cabe agora ao Senado da República refletir sobre as lições daquela madrugada em Guarulhos e impedir esta indesejável involução.
Luiz Henrique Lima é professor e escritor.
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