ECA e projeto No aniversário de 33 anos, maior presente ao ECA é aprovação do PL 3592/21
Na data em que o Estatuto da Criança e do Adolescente completou aniversário de 33 (trinta e três) anos de vigência, o CONSULTOR JURÍDICO promoveu uma entrevista com especialistas[1], ocasião em que, dos entrevistados, resultou quase unanime a posição acerca da necessidade de algumas poucas atualizações no texto legal, com a ressalva de que o ponto nevrálgico da normativa, na atualidade, não é sua atualização, mas sim, a efetiva aplicação dos princípios nela consagrados.
Dos recortes temáticos feitos pelos entrevistados, não foi contemplada a parte do Estatuto da Criança e do Adolescente que trata do procedimento de apuração de ato infracional. Parte esta que, não obstante algumas atualizações no texto legal desde a sua vigência, está intacta desde o longínquo ano de 1990.
Dentro desse contexto, não raras vezes, os Tribunais tem se deparado com espaços de contradição existentes entre o viés teleológico do Estatuto da Criança e do Adolescente e sua efetiva aplicação, reparando ilegalidades que, no âmbito do procedimento de apuração de ato infracional, são cometidas em desfavor da criança e do adolescente sob a premissa de que estas servem à própria proteção do menor tido por infrator.
Vide a recente decisão da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, prolatada no HC 769.197/RJ, noticiada pelo CONJUR[2], que estendeu também para o âmbito dos procedimentos de apuração de ato infracional o direito do imputado em ser interrogado no último ato da instrução processual, direito este que, nos termos do decidido pelo Supremo Tribunal Federal no paradigmático HC 127.900/AM, já é assegurado aos maiores imputáveis desde o ano de 2016.
Ainda, a também recente decisão prolatada pelo Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso, igualmente noticiada pelo CONJUR[3], que assegurou ao menor imputado o direito à detração penal em razão dos dias que cumpriu medida socioeducativa por força da execução antecipada de sentença de 1º grau posteriormente reformada por ocasião do julgamento do recurso de apelação defensivo.
Cite-se, também à título exemplificativo, recente decisão proferida no âmbito da Sexta Turma do STJ, no RESP 1923142/DF, que decidiu pela inadequação do manejo de ação rescisória pelo MPE, em face de decisão absolutória transitada em julgado, ante a impossibilidade jurídica do manejo da revisão criminal, com idêntica pretensão, em desfavor dos maiores imputáveis. A ementa do acordão deixou importante advertência no sentido de que “Não obstante o Recorrente afirme que a intenção seria proteger e educar o menor, que é vulnerável, observa-se que o real escopo da ação rescisória é reabrir a discussão acerca da prática do ato infracional e aplicar ao menor medida socioeducativa por fato em relação ao qual foi definitivamente absolvido, mostrando-se indevida a tentativa de usar a vulnerabilidade do menor em seu próprio desfavor.”
Essas discussões são trazidas à tona para demonstrar que algumas disposição previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente (como também algumas omissões), à pretexto de proteger o menor tido por infrator, acabam por lhe entregar situações fática/processuais muito mais gravosas do que aquelas que enfrentariam um maior imputável, este, por sua vez, protegido do abuso de poder por intermédio das muitas atualizações do Código de Processo Penal desde a sua vigência.
Nesse sentido, os escritos do Defensor Público Eduardo Pereira dos Anjos, divulgados pelo CONJUR[4], nos trazem um preocupante panorama das mais diversas situações processuais enfrentadas pelo menor imputado, em que, a pretexto de protegê-lo, tantos as disposições, como as omissões, do Estatuto da Criança e do Adolescente, acabam por lhe entregar prejuízos que não lhe seriam impostos se simplesmente adulto fosse.
Atualmente, o ponto de maior preocupação sobre os prejuízos que são impostos aos menores acusados da prática de ato infracional, a quem deveria ser assegurada especial proteção, reside na ainda não superação do precedente formado no âmbito da 3ª Turma do STJ, no HC 346.380/SP, que por um apertado placar de 5x4, decidiu ser possível a aplicação imediata da medida socioeducativa na sentença de 1º grau, mediante recebimento do apelo defensivo apenas em seu efeito devolutivo.
Com efeito, por intermédio do não recebimento do recurso de apelação em seu efeito suspensivo, abre-se a possibilidade de execução antecipada da sentença que submete o menor tido por infrator ao cumprimento de medida socioeducativa, inclusive a privativa de liberdade, sob a premissa teórica de que a incoativa não vulnera o princípio da presunção de inocência, aqui em conflito com o princípio da intervenção precoce (princípio que sequer orienta as medidas socioeducativas, mas sim, as medidas específicas de proteção).
Muito embora já exista no âmbito do STJ decisão monocrática do MIN. SEBASTIÃO REIS, prolatada no HC 557.506/RJ[5], contra a qual o MPF não interpôs recurso de agravo ao colegiado, no sentido de que após o julgamento das ADC’s 43, 44 e 54, pelo STF, não mais se justifica entregar ao menor infrator uma execução antecipada de sentença que não lhe seria imposta se imputável fosse, esse entendimento, replicado por ocasião do julgamento do HC 665.391/MT, restou vencido por 4x1 no âmbito da Sexta Turma do STJ.
Afirma-se a preocupação com a insistência sobre a vulneração da presunção de inocência que assiste a toda e qualquer pessoa humana, com especial ênfase às crianças e aos adolescentes (vide art. 3º, do ECA), à pretexto de se impor de forma mais célere possível a medida socioeducativa, na medida em que, basta um rápido cotejo da jurisprudência do STJ para se perceber a inúmera quantidade de precedentes que versam sobre a anulação de procedimentos de apuração de ato infracional por violações do direito ao contraditório e à ampla defesa.
Precedentes estes que versam sobre casos concretos em que o menor tido por infrator já se encontra cumprindo antecipadamente a sentença de 1º grau, não raras vezes, submetido à medida privativa de liberdade, para meses, ou anos após, assistir seu recurso defensivo ser provido para reformar a sentença executada antes da formação da culpa em definitivo, através de simples despacho do recebimento do apelo em seu efeito simples.
Como se o provimento do recurso defensivo fosse devolver ao menor imputado os dias perdidos em fase de cumprimento antecipado de medida socioeducativa, não raras vezes, privado da sua liberdade em um estado de coisas inconstitucional, nos termos do decidido pelo Supremo Tribunal Federal no paradigmático HC 143.988/ES.
Para não ir tão longe, basta a menção do caso concreto citado acima, no ponto que se discute a aplicação do instituto da detração penal no âmbito dos procedimentos de apuração de ato infracional, onde, muito embora a menor tivesse cumprido medidas cautelares como se essas também fossem substitutivas da internação no decorrer da instrução processual, como também mais de 01 (um) ano e 05 (cinco) meses de internação por força da execução antecipada da sentença de 1º grau, após o julgamento do recurso de apelação que desclassificou o ato infracional e, via de consequência, reconheceu a inadequação da medida socioeducativa cumprida antecipadamente, ainda pretendia o Juízo de 1º grau que o período já cumprido fosse encarado como se simplesmente não tivesse existido.
As situações problemas acima retratadas justificam as razões pelas quais o título destes breves escritos afirma que, no seu aniversário de 33 (trinta e três) anos de vigência, o maior presente que se pode dar ao Estatuto da Criança e do Adolescente é a aprovação do Projeto de Lei 3592/2021, em trâmite na Câmara dos Deputados.
O projeto de lei, de iniciativa do então Deputado Federal Carlos Bezerra, propõe a alteração do Estatuto da Criança e do Adolescente “para lhe dar conformidade à Constituição Federal, bem como para adequar a apuração de ato infracional atribuído à adolescente às garantias processuais previstas no Código de Processo Penal.”.
Em resumo, a iniciativa parlamentar resolve boa parte dos pontos de fricção atualmente existentes entre a doutrina da proteção integral e as garantias processuais que devem ser asseguradas à toda e qualquer pessoa humana, com especial ênfase às crianças e aos adolescentes, entregando ao menor acusado da prática de ato infracional todos os direitos que lhe seriam assegurados se simplesmente adulto fosse.
Com efeito, o texto prevê
a) A equiparação das hipóteses de internação provisória às hipóteses excepcionais de decretação da prisão preventiva;
b) A presunção de inocência como princípio norteador dos procedimentos de apuração de ato infracional, vedando a imposição antecipada da medida socioeducativa, à exceção das hipóteses de cautelaridade;
c) A submissão do menor flagranteado à audiência de custódia;
d) A imposição à representação inicial de todas as formalidades impostas à denúncia que se oferece no âmbito do processo penal;
e) O direito do menor em ser interrogado no último ato da instrução, como também, se for de sua vontade, valer-se do direito ao silêncio integral ou seletivo;
f) Prazo de apresentação de defesa preliminar em 10 (dez) dias, a exemplo do prazo concedido para apresentação da resposta à acusação no processo penal;
g) Prazo para apresentação de memoriais escritos e, não necessariamente, de forma oral, ao término da audiência;
h) O direito do imputado em apresentar suas razões recursais apenas em 2º grau de jurisdição, a exemplo do que prevê o artigo 600, §4º, do CPP.
Veja-se que todas as garantias supra são asseguradas pelo Código de Processo Penal aos maiores imputáveis e acusados da prática de crime, não obstante, seja por suas disposições, como também por suas omissões, não previstos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente aos menores inimputáveis e acusados da prática de ato infracional análogo à prática de crime.
As reformas legislativas propostas pelo PL 3592/2021 são quase lógicas, na medida em que, não se justifica que a não atualização do Estatuto da Criança e do Adolescente no decorrer dos anos, no mesmo compasso do Código de Processo Penal, autorize que a pretexto da sua própria proteção, crianças e adolescentes continuem enfrentando situações processuais prejudiciais ao seu direito de defesa pelo simples fato de ainda não contarem com sua maioridade penal.
Essa linha intelectiva está em consonância com o hodierno entendimento do STJ no sentido de que “1. O adolescente contra o qual se imputa a prática de ato infracional deve ter todos os direitos, no mínimo, do acusado no processo comum. (...)(AgRg no HC n. 691.998/SC, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 8/2/2022, DJe de 14/2/2022.)”
Assim, notadamente pelo já pacificado entendimento no sentido de que a natureza também pedagógica das medidas socioeducativas delas não retira seu caráter punitivo, especialmente em se tratando de medida privativa de liberdade, na atual quadra evolutiva dos direitos humanos, cuja observância é retratada pelo artigo 3º do Estatuto da Criança e do Adolescente, no seu aniversário de 33 (trinta e três) anos, o maior presente que se lhe pode dar, é a retirada da mora parlamentar na tramitação do PL 3592/2021, assegurando às crianças e aos adolescentes acusados da prática de ato infracional tudo aquilo que lhes seria assegurado se simplesmente adultos fossem.
Artur Barros Freitas Osti é mestrando em Direito pela Universidade Federal do Estado de Mato Grosso (UFMT).
[1] Aos 33 anos, ECA não precisa de revisão, mas de aplicação, segundo estudiosos. CONJUR. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-jul-13/aos-33-anos-eca-nao-revisao-aplicacao
[2] STJ estende ao menor infrator o direito a ser interrogado ao fim da instrução. CONJUR. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-jun-17/stj-estende-menor-infrator-direito-interrogado-ultimo
[3] Adolescente infrator tem direito a detração penal, decide TJ-MT. CONJUR. Disponível em https://www.conjur.com.br/2023-jul-07/adolescente-infrator-direito-detracao-penal-decide-tj-mt
[4] Quando a proteção integral é invocada para agravar a situação da criança. CONJUR. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-out-06/tribuna-defensoria-quando-protecao-integral-invocada-agravar-situacao-crianca
[5] Medida socioeducativa só pode ser executada após o trânsito em julgado, diz STJ. CONJUR. Disponível em https://www.conjur.com.br/2020-mar-26/medida-socioeducativa-executada-transito-julgado?imprimir=1
Comentários