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Opinião
Domingo - 25 de Fevereiro de 2024 às 00:46
Por: Eduardo Mahon

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Nas últimas peças de teatro, sentei-me perto da saída de emergência para, caso não fosse bom o espetáculo, pudesse abandoná-lo discretamente.

Procedi da mesma forma no domingo, dia 18, quando fui assistir “Verniz: náutico para tufos de cabelo”. Demorei no carro uns 10 minutos, tempo suficiente para que as pessoas começassem a entrar e eu pudesse me sentar perto da saída de emergência. Com medo de ouvir os intermináveis discursos de agradecimento aos patrocinadores e políticos, estava alerta para fugir dali. Felizmente, porém, não houve a recorrente verborragia que abusa da paciência do público.

Tive uma grata surpresa com a cenografia assim que a cortina foi aberta. Na verdade, eu já imaginava um bom resultado de Douglas Peron porque acompanho outras produções em que a cenografia dele fez a diferença. No caso de “Verniz”, o anteparo de chapas galvanizadas e todo o conjunto cênico em tons de cinza contrasta com os detalhes em vermelho, sobretudo do sofisticado figurino de Bianca Poppi. A música da guitarra, teclados e percussão antecipava um clima obscuro e bizarro em que estavam mergulhadas as personagens. O mérito da música de Jhon Stuart e Gus Lima resta evidente na tesão mantida por quase uma hora de espetáculo.

A dupla de atrizes esmerava-se em preparar tufos de cabelo que seriam oferecidos aos convidados com lembrança de aniversário. Eram as madeixas de uma mãe-objeto, logo apresentada ao público que tem a atenção sequestrada pelo catatonismo desse manequim vivo, um elemento cenográfico a mais que perturba pela muda onipresença.


Na claustrofobia da cena, desenvolve-se o diálogo. As bexigas vermelhas que são paulatinamente preparadas para a festa inundam o palco de um anúncio de tragédia. Do que se trata o corpo que deveria estar entre os discos e as enciclopédias? Qual a perversa relação entre a patroa que coleciona frases e empregada abatida pela dor de dentes?

Enquanto o público se incomoda com o hiato de razão no colecionismo de uma das personagens, a música continuava perturbando os sentidos. O texto mantém a lógica e retoma o enredo central quando se aproxima do limite do nonsense e o público permanece imerso na tensão brechtiana. Qual o desfecho possível? A frustração é o elemento central do contemporâneo. O insólito diálogo entre as duas mulheres, além de retratar a opressão nas relações de trabalho doméstico, vai mais além. Expõe o sadismo humano e seu dramático avesso masoquista. Essa exasperação que o público sente transforma-se paulatinamente em riso nervoso diante do avanço psicótico, grande mérito da direção de Dani Leite.

Nessa altura, chamo atenção para o texto que serve de base à bela interpretação de Karina Figueiredo, Debora Vecchi e Dani Leite. Qualquer peça só é grande se houver um grande texto. Foi o caso de “Verniz”. O dramaturgo Victor Nóvoa mantém-se entre o erudito e o coloquial, flertando com a sofisticação literária. “Meus olhos são como figos desidratados” é, por exemplo, uma frase que não me saiu da cabeça. Talvez haja um certo deslocamento temporal no texto que me pareceu incompatível com a atualidade, mais adequado aos anos 60, nada que tenha comprometido o impacto no expectador.

Enfim, a resenha é um elogio rasgado, fato que não furta o mérito da peça, é claro. Em geral, assisto a muita coisa que me parece amadora, talvez pela carência de patrocínio. Nesse caso, fiquei realizado ao perceber que ainda há teatro no teatro. Sobretudo em Mato Grosso, onde o espaço é sequestrado por eventos políticos, sociais e cultos religiosos. “Verniz: náutico para tufos de cabelo” é uma peça que merece ser amadurecida com apresentações constantes e deve receber todo o apoio para a itinerância estadual e nacional. Agradeço ao Luiz Marchetti por ter me convidado. No domingo à noite, saí do Zulmira Canavarros convicto de que vale a pena ir ao teatro. Na próxima apresentação, hei de me sentar numa poltrona mais perto do palco.

Eduardo Mahon é escritor.



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