Entre a Política e a Honestidade: o jogo na democracia brasileira
Segundo Finley, Aristides - um líder político ateniense - encontrou certo aldeão que estava indo votar um ostracismo. Esse analfabeto, ao ver Aristides, pediu-lhe para escrever no caco de cerâmica (óstrakon) o nome: ARISTIDES. Então, o próprio Aristides perguntou-lhe: que mau Aristides lhe fizera? O homem respondeu: “Absolutamente nenhum. Nem sequer conheço o homem, mas estou farto de ouvir chamar-lhe ‘O Justo’ por toda a parte.” Ao que Aristides, pois era ele o homem, claro, colocou seu próprio nome como lhe fora solicitado (ARISTIDES apud FINLEY, 1985).
Ostracismo era um instrumento na democracia grega usado para exilar ou banir algum cidadão que representasse algum tipo de ameaça à ordem democrática ateniense. Em que pese os atos de Aristides, fato é que boa parte dos leitores admiram a ação honesta de Aristides em escrever seu próprio nome no voto de condenação. O aldeão era analfabeto, se o “Justo” escrevesse qualquer outra coisa, nem saberia. Mas o “probo” se recusa a tentação que assola os mais fracos e, honrosamente, prostra-se ante a vontade soberana popular, fazendo conforme lhe fora solicitado. Por outro lado, o aldeão, analfabeto, quer simplesmente banir um político por ser chamado de justo por toda parte. A injustiça está engatilhada!
Na verdade, isso tudo diz mais sobre Plutarco – o propagador dessa história – séculos depois, do que sobre Aristides (políticos) e o aldeão (cidadãos/camponeses). É, portanto, mais sobre a necessidade de propagandear a ideia de honestidade e honra (supostamente presentes no personagem Aristides), bem como da completa necessidade de tutelagem do pobre aldeão, entregue aos afetos e rancores, do que relatar um real acontecimento na democracia ateniense.
É consenso, imagino, que todos gostaríamos que a honestidade na política fosse uma prática comum entre todos os envolvidos no sistema democrático representativo. Estou me referindo aos políticos profissionais. Acredito que Plutarco também desejasse isso séculos atrás. Talvez essa propaganda moral tenha surtido algum efeito. É natural que todos desejem lideranças justas e honestas; não há nada de errado nisso, aliás, o contrário disso não é naturalmente esperado.
Contudo, é válido notar que escolhemos, historicamente, viver em uma democracia. Esse sistema é imperfeito e relativamente novo deste lado do mundo, porém é aquele cujos resultados são comprovadamente os melhores para a humanidade em todos os sentidos. Todavia, sua lógica de funcionamento possui regras próprias. O jogo democrático exige muita atenção e certa maturidade, pois ele é fluido e desloca-se para os lados que jogam melhor e com relativa facilidade. É necessário saber jogar!
Concordamos com Finley (1985), “cabalar, angariar votos, persuadir eleitores, permutar serviços, recompensas e benefícios, fazer ajustes e alianças, são técnicas essenciais da política na vida real, em toda e qualquer sociedade política conhecida, a linha entre a corrupção e não-corrupção é não só extremamente difícil de traçar como também muda de acordo com o sistema ético do observador”. Quem joga na democracia são os humanos. A honestidade é esperada ao mesmo tempo, em que as paixões seduzem. É preciso esforço moral e ético no jogo!
A cada dois anos no Brasil, colhemos resultados dos jogos democráticos em escalas municipais, estaduais ou de abrangência nacional, é o caso das eleições presidenciais. Nossos representantes nesses níveis, com exceção dos senadores, têm mandatos por quatro anos. Na democracia, por exemplo, o resultado das eleições é a soma dos esforços estratégicos que durante anos anteriores foram realizados. Precisamos entender isso! Na democracia brasileira as regras do jogo mudam com certa frequência. É preciso conhecer as regras antes de jogar! É preciso deixar de ser apenas rancorosos e moralistas!
Talvez, devido à complexidade do jogo que a democracia brasileira impõe, somado a diversos fatores sociais e históricos, tonar-se quase impossível para um cidadão acompanhar e compreender tal universo. Hiperconectados, hoje em dia, os brasileiros estão mais vulneráveis às propagandas, às narrativas políticas e ideológicas. Compreender como esses discursos são construídos é o outro lado do jogo. Mas, deixar para pensar nisso, nos “45 do segundo tempo” é desaconselhável.
Enfim, a narrativa, habilmente propagada por Plutarco ao longo dos séculos, ilustra não apenas a busca pela honestidade, mas também a influência da propaganda moral na construção das expectativas em torno dos líderes políticos. Propaga também uma visão de cidadão apaixonado e irracional, o que nem sempre é verdade. O marketing, essa nova ferramenta que veio para ficar, nos convida a uma nova postura cidadã. Ele nos chama, como nunca, a uma consciência crítica do universo democrático.
Assim, ao invés de nos deixarmos seduzir apenas pelas narrativas simplistas de virtude individual, devemos reconhecer as nuances e desafios do cenário político brasileiro, comprometendo-nos a participar ativamente do processo democrático com responsabilidade, consciência e ética.
Eduardo Leite é doutor em História pela UFMT
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