Receita, o dilema médico
Desde o último domingo, por força de resolução da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), a venda de antibióticos só é feita com receita médica controlada. A farmácia que desobedecer estará sujeita a multa de R$ 1,5 milhão. A medida é justificada pela constatação de que o uso indiscriminado desses medicamentos torna a população resistente e favorece a proliferação da KPC, a superbactéria que ultimamente assombra os hospitais brasileiros.
A causa e justificada e vai de encontro ao desejo de todos os brasileiros. Poderá até barrar a superbactéria, mas traz o risco de privar milhões de pessoas, especialmente as mais pobres, do uso e dos benefícios dos antibióticos. As farmácias só poderão comercializá-los com receita emitida no máximo há 10 dias. Mas, além do hábito, a população brasileira costuma recorrer à automedicação também por não ter acesso ao médico. Embora a saúde seja “direito de todos e dever do Estado”, como explicita o artigo 196 da Constituição, isso ainda não passa de uma aspiração.
Aproximadamente 500 dos 5560 municípios brasileiros não têm medico e, nos que têm, o que se vê é muita gente sofrendo e até morrendo sem assistência nas portas de ambulatórios, pronto-socorros e hospitais e intermináveis filas - muitas delas mantidas por meses à base de senhas - para se conseguir uma consulta medica. Até os planos de saúde particulares já começaram a judiar de seus clientes, impondo-lhes espera de 30 dias ou mais para a consulta desejada e paga. Logo, se for só com consulta, muitos pacientes (entre eles os realmente necessitados) não conseguirão adquirir o medicamento.
Recente publicação do Cremesp (Conselho Regional de Medicina de São Paulo) informa que o Brasil possui um médico para casa 551 habitantes. Há um (médico) por 412 (habitantes) na região Sudeste, um para 435 na Centro-Oeste, 534 na Sul, 967 na Nordeste e 1090 na Norte. Os números brasileiros, se comparado às estatísticas mundiais, são superiores apenas a países reconhecidamente atrasados. Com a agravante de termos aglomerações de profissionais em São Paulo e alguns outros centros, mas isso também não representar garantia de atendimento à população dessas áreas. A dívida social do setor é enorme.
Embora tenham o dever de cercar a superbactéria e os maus hábitos de consumo de medicamentos, os órgãos governamentais devem fazê-lo de forma a facilitar e promover o acesso da população aos serviços, meios e medicamentos necessários à manutenção de sua saúde. No quadro agora criado, o quê deverá acontecer àquele cidadão que tiver um quadro infeccioso complicado e não dispuser de dinheiro para pagar o médico particular? Morrerá? Antes da burocrática exigência da receita recente e da ameaça de pesadas multas, a Anvisa e o próprio Ministro da Saúde deveriam levar em consideração que os antibióticos já fazem parte da vida de milhares de brasileiros, mesmo quando não receitados pelo médico. Antes de impor a restrição, deveriam ter cuidado de garantir o acesso à consulta médica a todos. Aí sim, estariam fazendo bonito e realmente resolvendo um problema do povo e do país.
Exigir a receita médica daqueles que não têm garantido o seu direito constitucional de acesso ao médico é, no mínimo, desumano. Talvez o presidente Lula, que já foi um do povo e, como tal, deve conhecer essa dificuldade, ainda tenha tempo para reverter a situação...
Tenente Dirceu Cardoso Gonçalves dirigente da ASPOMIL (Associação de Assist. Social dos Policiais Militares de São Paulo)
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