Cachimbo da paz
Na televisão por assinatura, há um canal de filmes antigos. Para não falar "velho", o marketing chamou de "cult", ainda que alguns de cultura não tenham nada. De qualquer forma, são clássicos que merecem ser revisitados. Para os cinéfilos, vale a pena pontuar determinada ótica do diretor, como alcançava efeitos inesperados com escassa tecnologia; para os menos engajados, simplesmente o prazer de rever uma cena, uma história, relembrando de si próprio à época da estreia do filme.
Numa dessas madrugadas, um filme antigo me chamou atenção. Os personagens fumavam tranquilamente dentro do veículo fechado. Lembrei dos automóveis mais luxuosos. Tinham, inclusive, cinzeiros laterais, instalados em cada porta. Com os vidros erguidos, o carro seguia o trajeto esfumaçado, sem maiores constrangimentos. Foi um costume que desapareceu junto com a calça boca-de-sino, roupa de crochê, tamancos e lenços na cabeça.
A preservação do meio ambiente não tinha qualquer relevância. Ao contrário - abordar o tema enfaticamente poderia ser interpretado como tendência hippie. Era antipático ser responsável. O desenvolvimento era o fim que justificava qualquer meio para alcançá-lo. Valores como saúde coletiva, longevidade, projeção, limpeza, racionalidade não estavam em voga, sendo relegados ou para uma minúscula classe de intelectualóides ou o gueto dos adeptos da paz e do amor. É curioso ver uma tendência ser tão drasticamente modificada.
As coisas mudam. Mudam espontaneamente ou a contragosto. Com efeito, a política usava (ainda usa) o desenvolvimento nacional como plataforma principal, sem qualquer ressalva. As imagens paradigmáticas eram (ainda são) barragens em grandes rios, estradas e pontes, estaleiros e ferrovias, derrubada da mata nativa etc. Isso era (ainda é) o progresso. Casacos, sapatos e relógios de couro de animais, pisos e forros domésticos de madeira de lei, tudo era sinal de status e, portanto, objeto de desejo sem culpa. Essas imagens tendem a ficar tão superadas como a gomalina na cabeça das melhores atrizes.
Ao que parece, avizinha-se outro tempo. Tomou corpo o discurso ecológico da responsabilidade privada e pública pelo meio ambiente. Igualmente ganhou amparo responsabilidade social de empresas ao somar forças em causas humanitárias. Adotar uma causa confere credibilidade. Os meios se tornaram tão ou mais importantes que os fins empresariais. Ninguém tem coragem de menosprezar ou afrontar a temática ecológica, ainda que muitos ruminem protestos entre quatro paredes.
Lentamente, a política sente o reflexo da mudança. Onde os "verdes" formavam pequenos nichos de esquisitos pregadores apocalípticos, hoje partidos organizam-se e tomam o poder em países europeus e ensaiam disputar seriamente espaço na maior economia latino-americana. O rompimento interno no seio petista só fez mais visível a diferença de ótica sobre o rumo da gestão pública nacional. Após décadas, os "verdes" ganharam visibilidade, autonomia e viabilidade eleitoral.
Acredito ser uma questão de tempo para o fortalecimento da plataforma ética em geral, de solidariedade ecológica e humanitária. Explica-se: aquela antiga teia familiar da política do fisiologismo está cedendo lugar ao pensamento macro, estratégico, economicamente viável e de longo prazo. Sustentabilidade nunca foi marca do consumismo, mas diante das circunstâncias, a pressão popular cada vez demanda mais responsabilidade, previsibilidade, controle e transparência.
Contudo, um grande desafio ainda deve ser superado pelo meio acadêmico e político, ambos engajados no discurso de conservação e preservação: como olhar o passado? Punir retroativamente? Romper com fatos culturais e fenômenos econômicos regionais? Preferir a lógica do enfrentamento punitivo à da composição? Eis aí o que falta - de que forma os pensadores do futuro enxergarão quem já pertence ao passado? Quais as formas de composição de valores em conflito? Como fumar esse cachimbo da paz? O poder inevitavelmente será daquele que pensar na melhor solução.
Eduardo Mahon é advogado. E-mail: eduardomahon@eduardomahon.com.br
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