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Opinião
Sexta - 03 de Novembro de 2023 às 05:57
Por: Deosdete Cruz Junior

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A Assembleia Nacional Constituinte expressou no preâmbulo da Constituição Federal de 1988 que teve por objetivo central instituir um Estado Democrático, fundado na harmonia social e comprometido, nas ordens interna e internacional, com a solução pacífica de controvérsias.

Aí reside o fundamento de validade da proeminência da autocomposição como vetor para a resolução dos conflitos em quaisquer searas, poderes e instâncias.

Solucionar pacificamente uma controvérsia implica reconhecer que a vocação natural do Estado de Direito é a busca permanente da harmonia social, o que se deve perquirir, sempre que possível, por métodos menos invasivos ou coativos. Daí porque se diz que o ato estatal representado pela sentença judicial, por ser típico ato de força e autoridade, eis que impositivo e derrogatório da vontade das partes e interessados, deve ser precedido da tentativa da obtenção do consenso, sendo esse um elemento que resgata e mantém a paz como condição essencial ao desenvolvimento da sociedade em seus múltiplos aspectos.

Se o litígio é uma realidade inafastável, essa obviedade não deve deixar de movimentar todos os atores do sistema de justiça em busca do consensualismo, que muito além de possibilitar a efetivação da máxima de justiça perseguida por todos os povos, com ampla possibilidade de resolutividade das questões postas, seguramente contribuirá para que o Poder Judiciário possa se ocupar, de forma residual e não menos importante, da gama de casos que não foram exitosamente resolvidos pelos métodos autocompositivos.


Nesses casos, em que apesar das tentativas fracassadas da construção do almejado consenso, ou mesmo diante da intensa e complexa indisponibilidade de alguns direitos venha a se apresentar como tarefa árdua e muitas vezes inalcançável, caberá ao Poder Judiciário, como última barreira para a resolução da controvérsia, afirmar a norma jurídica violada ou ameaçada, com a segurança jurídica ínsita à jurisdição por sua peculiar qualidade da definitividade.

Não é demais destacar que ao longo da história o legislador confiou ao Ministério Público diversos instrumentos autocompositivos almejando que a função essencial à justiça pudesse colaborar para dirimir, de modos diversos, as múltiplas formas de litígio estabelecidos sobre direitos metaindividuais.

Apenas como forma de remissão, cite-se a Lei da Ação Civil Pública, com a previsão do termo de compromisso de ajustamento de conduta; a Lei dos Juizados Especiais, com a previsão da transação penal e da suspensão condicional do processo; a Lei da Colaboração Premiada; e mais recentemente o “Pacote anticrime”, que estabeleceu em lei a figura do acordo de não persecução penal, bem como a reforma da Lei de Improbidade Administrativa, que fixou a possibilidade do acordo de não persecução cível.

Até mesmo a polêmica que antes sobressaía sobre a possibilidade ou não de acordo em direito indisponível pela Administração Pública acabou por ser superada na esfera jurisprudencial e legislativa, de forma que qualquer direito público pode ser transacionado com a observância das exigências legais, como ocorre, por exemplo, com a Lei de Mediação, cujo art. 3º, inciso II, exige a manifestação do Ministério Público e a homologação judicial, e com o art. 26 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que sufraga este método como forma de eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa no direito público.

Apesar desses importantes e valiosos instrumentos postos à disposição do Ministério Público e dos números crescentes de resolução de controvérsias através do método autocompositivo, há muito ainda a avançar nessa temática. Já se verifica que o número de acordos superou a quantidade de ações propostas, no entanto, para alcançar a macro resolutividade pretendida, com o escopo de empregar efetividade na solução de conflitos em diversas áreas e, por consequência, desafogar o Poder Judiciário, para que as demandas postas em juízo sejam respondidas em tempo razoável, essa diferença de ajustes celebrados em relação à ações judicializadas precisa ser ampliada.

A reflexão sobre as causas que possam ensejar o resultado ainda tímido para a ampliação do número de acordos nas causas de interesse e atuação do Ministério Público decorre, a nosso ver, basicamente de duas razões.

A primeira de ordem cultural, pois fomos formados em um ambiente acadêmico, e também herdamos um modelo de atuação ministerial pautado e orientado pela premissa de que a demanda e o litígio assumem a feição de pontos centrais de nossa atuação. Confundia-se, inclusive, a função do promotor de Justiça como sendo aquela parte que age em nome do Estado simplesmente carreando a pretensão deste a juízo após uma análise perfunctória sobre a existência de indícios ou mesmo da viabilidade da causa, sem maiores reflexões sobre a possibilidade de êxito e, principalmente, de que forma a instituição pode concorrer para a resolução do ilícito denunciado. Existe sim, é verdade, um esforço gigantesco para superação deste formato, e não podemos dizer que o legislador não tem sido bastante incentivador com a oferta de instrumentos valiosos para reduzirmos a distância, ainda longa, entre promover ações e promover justiça.

Da mesma forma, a jurisprudência tem se revelado bastante positiva para aqueles que pretendem superar o modelo defasado de atuação pautado na simples subscrição de uma ação judicial, que se muitas vezes é essencial, pode em diversos casos ser evitada com a simples abertura de um diálogo pautado na análise pragmática dos resultados que podem ser alcançados desde logo com a composição, em detrimento dos resultados sempre incertos e postergados em caso de manutenção da postura conflituosa comum ao litígio clássico.

Com foco na alteração do modelo mental de atuação, objetivando a superação de uma cultura mais voltada à litigiosidade do que à autocomposição, temos incentivado cursos e formações voltados ao debate de técnicas autocompositivas, e emitido um chamado para que os órgãos de apoio da Administração Superior do Ministério Público do Estado de Mato Grosso, como forma de influenciar e incentivar aos órgãos de execução, optem e prestigiem caminhos resolutivos que priorizem o diálogo, a construção de acordos com repercussão social e retorno abreviado de utilidade para a comunidade.

Todo esse esforço e a guinada pretendida não prescindem de que os membros do Ministério Público pautem suas escolhas em uma análise econômica do direito, resultando, por exemplo, em questionarmos se alcançaremos o pretendido princípio da eficiência com a propositura de milhares de ações judiciais, quando temos o dever de buscar a solução das controvérsias e não simplesmente de transferirmos essa missão ao Poder Judiciário, de forma que remanesça à jurisdição tão somente os caos em que realmente o acordo não foi possível apesar de todas as tentativas. Esse olhar pragmático não é menos científico, na medida em que o mundo teórico existe por causa e em função da vida real, onde projeta efeitos e deve colher resultados úteis para o corpo social.

A segunda razão que pode contribuir para não termos alcançado um índice mais substancial de resolutividade pela autocomposição, está ligada à carência de instrumentos internos de revisão que permitam, no âmbito do próprio Ministério Público, a discussão sobre qual a medida institucionalmente adequada para o caso, de forma que a propositura da ação não seja a única e imediata solução, permitindo-se em casos de recusa, ou até de omissão do membro do Ministério Público, que se discuta se naquele caso em particular não seria mais adequado e razoável, em detrimento da propositura imediata de uma ação, a celebração de um acordo que pudesse pôr fim ao problema.

Podemos mencionar, a título de exemplo, a previsão na normativa do Ministério Público do Estado de Rondônia que prevê a possibilidade do interessado recorrer ao Conselho Superior do Ministério Público caso o membro em primeira instância se omita ou recuse pactuar ajuste para pôr fim à causa. Na mesma esteira, tramita perante o Senado Federal o Projeto de Lei n° 4337, de 2023, proposto pelo Senador Mauro Carvalho Júnior (MT), com o intuito de estabelecer que em casos de recusa ou omissão do membro do Ministério Público, caberá ao Conselho Superior a possibilidade de determinar a realização do termos de ajustamento de conduta ou do acordo de não persecução cível, estabelecendo-se um mecanismo de controle sobre a atuação do promotor de Justiça, mantendo-se, no entanto, a possibilidade da própria instituição dar a última palavra sobre o cabimento ou não do ajuste.

Existe um esforço interinstitucional para que o sistema de justiça e cidadania alcance melhores resultados, seja mais resolutivo, ágil e efetivo, e o Ministério Público do Estado de Mato Grosso soma e continuará a somar esforços nesta caminhada, seja compondo, fortalecendo e participando dos Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania do Poder Judiciário, seja das Mesas Técnicas do Tribunal de Contas, sem prejuízo da atuação diária e difusa dos membros ministeriais por meio da pactuação de centenas ou milhares de acordos.

Além disso, fortaleceremos ainda mais o nosso Núcleo Estadual de Autocomposição (NEA), e estruturaremos a instituição de forma crescente para a preponderante resolução dos conflitos pela via da composição, pois é esse seguramente o caminho que torna a nossa instituição verdadeiramente útil para a sociedade que é destinatária de nosso trabalho.

Deosdete Cruz Junior é procurador-geral de Justiça de Mato Grosso.



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